A festa de Babette:
verificando os conceitos
de cerimonial, etiqueta e protocolo
Maria Teresa dos Santos Arantes
A proposta
No contexto da disciplina Cerimonial,
Serviço e Etiqueta do curso de Pós-Graduação em Gastronomia, Cultura e Gestão
La Salle, a professora Cristina Lontro solicitou aos estudantes uma experiência
cognitiva de parte do conteúdo das aulas presenciais através do uso do filme A Festa de Babette, no sentido de
verificar a aprendizagem dos seguintes conceitos abordados em sala de aula:
cerimonial, etiqueta, protocolo e quebra de protocolo.
Após assistirem o filme, os estudantes deveriam
apresentar um texto com os saberes adquiridos. Se assim tinha que ser, e antes
da sessão, preparei-me privilegiando os recursos de (1) informar-me da
narrativa do filme e (2) elaborar um formulário para anotações das passagens do
filme e dos conceitos abordados para uma interpretação que mostre a
inter-relação dos conceitos e ficção.
Assim, este texto pode ser lido como
“fechamento” da disciplina (uma dentre várias outras leituras possíveis). Fico
com aquela que o declara um documento de pedagogia da imagem, e um meio diferenciado
de com-partilhar a prática com a arte que amplia “nossas habilidades, nosso
repertório comportamental e nossa flexibilidade de resposta a situações
diversas,”¹ desenvolvendo competências de conhecimento.
O filme
A Festa de Babette (no original Babettes Gæstebud,
1987), dirigido por Gabriel Axel e roteiro baseado no conto de Karen Blixen, é
do gênero drama. A narrativa se passa em um vilarejo da Dinamarca no final do
século XIX onde Babette, refugiada da guerra civil na França, se emprega como
doméstica na casa das filhas de um pastor luterano. Um dia, após quatorze anos,
sabe que ganhou na loteria e, ao invés de voltar à França, convence as irmãs a
preparar um banquete em comemoração ao centésimo aniversário do pastor. Um jantar formal é a festa de Babette!
Os conceitos
Quando se trata de fixar conceitos, sirvo-me de
dicionários.² Ao olhar “científico”
parecerá um recurso superado, mas a palavra em sua origem, ainda que possua
muitos significados, dá a possibilidade de nos movermos no seu sistema de
referência mesmo, e não fora e em torno dele. É isto que abordo imediatamente
agora.
A palavra “protocolo” em latim medieval
soa protocollum, formada de prôtos,
‘primeiro + kóla’ goma donde cola, e fala de um registro autêntico, o resumo e
o sumário de deliberações. Protocolo, então em sua essência, se refere ao
registro do conjunto de deliberações que permite estabelecer um procedimento.
Se não, é o quê?
Ao ouvir “cerimonial”, do latim caerimoniália, lembro de cerimônias e o
adjetivo significa: relativo a cerimônias. Porém não apenas isto, sou carregada
pelas idéias de pessoas, organização e procedimentos. Para o momento, reclamo
para o
cerimonial a tarefa de
organizar pessoas e procedimentos com determinado objetivo. Ainda mais: ele não
é necessariamente formal; ele não abre mão é da observância das regras de
etiqueta e protocolos.
Se
procuro “etiqueta”, encontro a francesa étiquette
e uma explicação: “il se dit de formes cérémonieuses dont les particuliers
usent entre eux”. ³ Na explicação se
pode apontar para regras de comportamento em que a gentileza, e a sua prática
nos modos da existência devem ser pensadas como fundamento do estar no mundo com o outro.
Do que foi dito, e só com base no que
foi dito, é possível corresponder os conceitos na pergunta: A etiqueta é,
enquanto protocolo, o fundamento do cerimonial? não apenas para compreender
melhor, mas continuar a falar do que estamos falando. Se e quando, deixo em
aberto.
O quadro
Para atingir o objetivo da proposta,
manifesto os conceitos, a narrativa do filme e a inter-relação entre os
conceitos e a ficção no Quadro abaixo. Se esta estratégia é clara, acertos,
equívocos e omissões, de algum modo, não comprometem a sua leitura. Ei-lo:
Conceitos
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Narrativa
do filme
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Inter-relação
dos Conceitos e Ficção
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Cerimonial
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A
organização do jantar em comemoração ao centésimo aniversário do pastor.
Babette apresenta seus saberes de chef
de cuisine.
|
Nesta
circunstância, ela providencia comida e bebida, porcelana, cristais e
prataria, e um empregado “treinado” para exercer as funções de auxiliar de
cozinha e garçom que serve ora à inglesa, ora à francesa: o seu sobrinho. A fatura da guirlanda para ser
colocada no retrato do pastor, convidados em ordem de precedência (a velha
senhora Lowenhielm e seu sobrinho general) e o mise-en-place de copos, talheres e pratos são elementos
relacionados ao conceito.
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Etiqueta
|
À
mesa do banquete, o general Lorens e os discípulos do pastor mostram suas
habilidades e conhecimentos para a ocasião.
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Apesar
de vestirem-se de forma adequada, os discípulos não têm “informação” suficiente
de como usar taças de consomée ou
de comer figos com garfo e faca, e de não limpar os dedos com a boca após
comerem manga. Lorens, em
contraponto, transformou-se em referência ótima de comportamento nas mais
diversas ocasiões e relacionamentos, inclusive nesta do jantar.
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Protocolo
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A
leitura e interpretação da Bíblia na casa das irmãs em companhia dos
habitantes do povoado.
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Comprometidas
em manter os preceitos religiosos “autoritários” do pastor, interdições se
estabelecem no cotidiano das irmãs: a sexual, entre Martina e Lorens; e a
profissional, entre Filipa e Papin. Em relação aos demais, a interdição é de
comunicação: calam-se conflitos.
|
Babette
assume a cozinha como se fosse aquela do restaurante Café Anglais onde ela não cozinhava; e sim fazia arte.
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Há
quatorze anos, encontrava-se em contexto desfavorável, sem condição de
exercer sua atividade. Com o banquete, mobilizam-se os procedimentos da alta
gastronomia: técnicas profissionais, cardápio autoral, apresentação dos pratos
e alternância de serviços: à inglesa e
à francesa.
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Quebra do
Protocolo
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Babette
pede às irmãs para custear a festa.
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A
aceitação do pedido por parte de Martina e Filipa coloca entre parênteses uma
restrição alimentar: o pirão de
arenque com pão de cerveja é substituído por um cardápio completo (sopa,
prato principal, salada, queijos, sobremesa e frutas) servido com vinhos e
champanhe.
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À
mesa, os convidados buscam salvaguardar-se
do “pecado”, evitando elogiar o banquete para espanto de Lorens.
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O
general propõe um brinde e um “sermão pastoral”. A situação é revertida com benefício de todos.
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A
ordem do cardápio no jantar.
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Contemporaneamente,
a salada não seria servida após o prato principal, a não ser que tivesse a
função de limpar o paladar antes da sobremesa; e a água já deveria estar nos
copos quando todos se sentaram à mesa.
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Na
saída do banquete, a dança dos convidados ao redor do poço sob o olhar das
anfitriãs.
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Assim
os prazeres da mesa transformam o culto por excelência e, nesta ocasião,
corpo e espírito entram em harmonia. Aleluia!
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A interpretação
Ao final da redação do texto,
permito-me uma interpretação reorganizando
os conceitos, o filme e a proposta. De forma sucinta:
Os
conceitos. É desejável, em
determinadas situações e circunstâncias, a quebra do protocolo no sentido de avançar mais um pouco no conhecimento de si
mesmo e do outro, e de novas práticas culturais.
É necessário conhecimento mínimo de regras de etiqueta para bem comportar-se em ocasiões específicas e
relacionamentos. É nos relacionamentos que se denuncia o comportamento elegante, aquele que trata o outro com
gentileza e respeito, que vem do coração que pode ser valente,4 e não dos manuais. É indispensável
planejamento como instrumento de pro-dução, “o ato de manifestar-se”, do cerimonial.
O filme. A Festa de
Babette é do gênero d’art et d'histoire. É arte de ficção: Babette não é uma chef real; o jantar não é um jantar real. Axel recriou o conto de
Blixen em som, imagem e movimento. Blixen inventou a “festa” no domínio das
realidades imaginárias. Entretanto, este domínio guarda relações com o real. 5 É arte de técnica: a superposição das
imagens nos cortes presente/passado e a vela que se apaga para assinalar o fim
da narrativa são exemplos. É história de histórias: um conjunto de práticas do
homem. 6 Nas práticas alimentares,
identifico a possibilidade de estudo de causas e implicações culturais das
categorias limitação/abundância de insumos ex-postos,
“postos à vista”, no modo de vida em Paris e no povoado no século XIX. É texto
de outra área do discurso humano: história, ou talvez antropologia.
A proposta. O uso de filmes (ou outro tipo de arte), apresentações
na base Power Point e dinâmicas
sociopráticas constituem protocolo benéfico nos cursos de graduação e
pós-graduação. Deixando de privilegiar aulas expositivas e leitura obrigatória
de bibliografia, 7 Lontro desenvolve a
experiência de ensino-aprendizagem em que se têm: (1) a exploração da imagem
que permite processo de rapidez e simplicidade na compreensão dos conceitos;
(2) a promoção da discussão com a alternância dos papéis de agente/espectador
entre professora e estudantes e (3) a multiplicação do conhecimento pela
inserção da formação anterior e experiências dos estudantes. É arte de entender
a prática docente.
Desta
interpretação, verifico que ultrapassei o limite da proposta, que era apenas o
de identificar os conceitos na narrativa do filme. Se não “errei na escolha”,
tal como o general Lorens, é porque na prática do discurso da área das ciências
humanas instala-se o intérprete que
responde ao apelo de falar para si mesmo pensamentos e, que enquanto o faz, diz
como Fernando Pessoa: 8
Isto sinto e isto escrevo
Porque
só sou essa cousa séria , um intérprete da Natureza,
Porque
há homens que não percebem a sua linguagem
Por ela não ser linguagem nenhuma.
Notas e Referências
1 DAVEL, Eduardo
et alii. Administração com arte:
experiências vividas de ensino-aprendizagem. São Paulo: Atlas, 2007.
[p.17.
2 Dicionário Houaiss. Disponível em www.educacaouol.co.br/dicionarios/ Acesso em 05/02/2012.
2 Dicionário Houaiss. Disponível em www.educacaouol.co.br/dicionarios/ Acesso em 05/02/2012.
3 Cf.
Dictionnaire d’autrefois. Disponível em www.artfl-project-uchicago.edu/node/17.
Acesso em 02/02/2012. Traduzido: “Diz-se de formas cerimoniosas no trato entre
indivíduos.”
4 Cf. Os
relacionamentos em questão são os de Babette com as irmãs entre elles, Babette com os comerciantes, Babette com o cocheiro, e
as irmãs com os velhos doentes que se dão na base da cordialidade, do latim cor, cordis, “coração”. O coração
valente de que aqui se fala é referência ao filme Coração Valente (Braveheart,
1995).
5 Cf.
BADIOU, Alain Autonomia do processo estético. Estruturalismo. Lisboa: Portugália, 1968.
6 A narrativa
do filme informa algumas histórias. Nelas vêem-se as seguintes práticas
culturais: religiosa, profissional, política, sexual e alimentar.
7 Ainda que
sejam de primeira importância, a imagem é o reflexo da nova percepção da
velocidade e comunicação imediata do mundo moderno.
8 PESSOA,
Fernando. Poesias completas de Alberto Caeiro. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1972.
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