Se você tem
interesse específico em práticas culinárias, ingredientes e modos de preparo da
cozinha brasileira, deverá buscar outra página. Desprovido de “cientificidade”,
preparei este texto levada pela memória afetiva de alguns pratos clássicos. Não
é ficção. O resultado parece ser o de uma justaposição de autobiografia e
gastronomia. E o objetivo é que, através dele, insinue-se a possibilidade de
(re)produção de textos semelhantes.
Antes de começar a ler: Não pedi
autorização para citar nomes. Caso encontre o seu, e isso lhe desagrade, saiba
que é possível excluí-lo, e ainda assim permanecerá incluso (dentro da minha
memória, ao menos!). Memória: é para dentro da gente. Eis a lógica do que é.
No Norte do Brasil | TACACÁ
Um estado e
referências. O avô Juca, tia Margarida e meu pai nasceram no Pará. Quando
vieram para o Rio de Janeiro, trouxeram no coração as mangueiras de Belém, o Teatro
da Paz e o mercado de Ver-o-Peso. Enquanto acentuavam a característica melting pot do mercado, onde cores e
texturas, sabores e cheiros das frutas e dos peixes se misturam aos demais
insumos da região, meus ouvidos de menina se impressionavam com o onomatopaico tacacá, que a adolescente colocaria
entre parênteses. Quando, entretanto, arrisco sugerir a origem e etimologia da
palavra, seguindo o que penso ter aprendido com o professor Horácio
Rolim no curso de Letras, parece surgir uma compreensão, de algum modo,
provável. Tacacá proveio do tupi-guarani
onde os elementos constitutivos são [taka] – haste, em referência à mandioca +
[kaá] – mato, ou erva ou folha, em referência ao jambu, em que os sujeitos-falantes suprimiram a vogal –a- para tornar a pronúncia mais fácil
ou agradável, do que se formou [takaká]. E mesmo que a sua etimologia fique em
suspenso, uma coisa é certa. Tacacá
classifica o Pará (e o Norte do país).
No Sul do Brasil | ARROZ
DE CARRETEIRO
Ficha técnica fornecida por Beatriz Dias |
Porto Alegre: Não curtiria a cuia cevando o mate. Não cuidaria do
fogo para assar a carne. Não dançaria a Tirana
do Lenço. No galpão, deveria limitar-me a tomar consciência da cultura e
cozinha riograndenses, que se manifestaram na preparação do arroz de carreteiro, ligando-o à
história da formação socioeconômica do Rio Grande do Sul. O carreteiro é simples.
Charque cozido com arroz em panela de ferro. Prático para os muitos dias de
viagem. Refeição calórica adequada às distâncias. Receita de tropeiros. Prato
de tradição. A experiência valeu para fechar um período do curso de mestrado,
em que não apresentei dissertação, nos anos 80. Ou a experiência valeu para
começar outro período? Não tenho certeza; é mesmo irrelevante! E tudo isso
aconteceu, promovido pela gentileza de Ana Maria Zilles, que levou as duas
colegas cariocas e uma paulista a um dos CTGs – Centros de Tradições Gaúchas. Guisado de vivências.
No Sudeste
do Brasil | MOQUECA CAPIXABA
Ficha técnica fornecida por Vicente Abreu |
O tio Murilo
combinou de passarmos o Carnaval em São Pedro da Aldeia. Fomos. No domingo,
convidaram-nos todos para a moqueca
da terça-feira gorda. Adivinhando que deveria ser igual àquela quente da Bahia, e adivinhando
igualmente uma desculpa para desobrigar-me do almoço, dormia mal. Não poderia
sentar-me à sombra de uma casuarina e ficar olhando a laguna. Não, não poderia
levar minha irmã, de seis anos, e escorregar nas dunas. Não poderia antecipar a
quaresma, e fazer orações na Igreja dos Jesuítas. E poderia ir à casa da
tia-avó Dorinha, simplesmente, para “belezinha” no cabelo? O que eu poderia
fazer à uma e meia, sol quente e vento de nordeste? E, eu fui almoçar. Mas a moqueca era outra: nem leite de coco,
nem azeite de dendê, ou ambos. Moqueca
capixaba. E essa era boa.
No Centro-Oeste do Brasil | FRANGO
COM PEQUI
Ficha técnica fornecida por Cristina Lontro |
Não estranhe
você se me sirvo de São Paulo para chegar ao Centro-Oeste do país. Em São
Paulo, no atelier de Vera
Parente, tudo se desdobrou pelo efeito semelhante do jogo de “palavra
puxa palavra”. No atelier, conversamos
sobre cerâmica (que outro assunto haveria numa oficina de cerâmica?!);
comentamos, ainda, o projeto O Prato é
Seu; e, consequentemente, falamos de comida. Não havia dúvida de que era
preciso almoçar. A cada almoço, resolvi observar de forma aleatória
participantes e escolhas de cardápio. E a observação alimentou-se de certa
curiosidade de conhecer a cozinha do cerrado. Não foi sem razão: a ceramista Adelisa
Machado viera de Dourados, MS, para o workshop. Nada lhe perguntei enquanto produzia combinações no
pensamento. Mas, assim que voltei a casa em companhia de minha irmã, também
ceramista (e arquiteta), pude descobrir que naquela região a amêndoa de espinhos
pretos e finos do Pequi combina com
arroz e milho verde, e com feijão e carne, e com isso ou aquilo. É, com as
preparações, conferir as propriedades gustativas desse fruto denominado dourado.
No Nordeste do Brasil | BOLO
SOUZA LEÃO
Ficha técnica fornecida por Beatriz Dias |
Muito mais
que patrimônio pernambucano: o Bolo
Souza Leão é de família há cerca de 140 anos. A meu pedido, quando
organizei material para o livro Retalhos
para Colcha: memórias em família,
minhas primas encontraram aquele outro de rolo nos manuscritos da avó paterna
que conheci; mas, com certeza, Maria Iracema de Souza Leão Salles Arantes
tinha a sua receita de memória. (Mesmo
que cada núcleo a tenha ao seu modo,
todos os Souza Leão a têm.) A essa
altura, se você nunca o provou, pode estar se perguntando o que há nele de tão
especial. Um único ingrediente faz a diferença! É a massa puba: massa úmida de mandioca fermentada. Devo,
ainda, dizer que a chef de cozinha Naila
Milani foi quem preparou esse da foto. Na ocasião, faltou-me ânimo para
fazê-lo e, inclusive, vontade de partilhá-lo. Saudades afastaram o eventual
prazer.
Antes de terminar de ler: E ainda assim
não termino, e assim desconfio que é possível seguir quando se pode lembrar com
a gente escrevendo tudo, assim como este
texto em que “ acabou-se o que era doce; quem comeu, regalou-se”.
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